Quando trabalhei na pastelaria fui obrigado a comprar umas sapatilhas brancas, já que fazia parte da farda, mas eles não forneciam.
Quis o destino que pouco mais de uma semana depois eu deixasse o trabalho.
Dessa forma fiquei guardador de um par de sapatilhas órfãs, já que eu me recusava a perfilhá-las.
Nunca na minha vida me achei capaz de um dia comprar um par de sapatilhas brancas.
Quando o fiz foi quase que se não estivesse presente no meu corpo.
Um pormenor que levou a que me enganasse duas vezes a meter o código do cartão multibanco na altura do pagamento.
Os dias foram passando e quase diariamente olhava para as sapatilhas que jaziam no armário.
Quase pareciam olhar para mim a pedirem para serem usadas.
Aos poucos comecei a olhar para os pés daqueles que pareciam calçar branco.
Reparei que não são assim tão poucos.
Mas notei também que os utilizadores de sapatilhas brancas formam uma espécie de sociedade secreta.
Tão secreta que parece que eles próprios não sabem da sua existência.
E há uma moda, código de deontologia dessa sociedade secreta.
O branco das sapatilhas há muito que deixou de ser branco.
Eles fazem até para que o branco seja sujo.
E eu comecei a enterrar o meu preconceito de que sapatilhas brancas só são utilizadas por cantores de Hip-Hop e membros de gangs nos Estados Unidos e Chelas.
Um dia, a chover, eu olhei para o armário com as palavras da minha mãezinha em mente: “quando chove pega em calçado que não deixe passar água”.
E do armário a seguinte frase:
“Nós não deixamos passar a água e somos muito confortáveis. E a lama de certeza que nos tira este branco que até faz doer os olhos.”
Confesso que cai na tentação, bem à imagem de Adão, aqui há uns anos atrás.
Calcei-as e gostei do que vi.
Combinavam até com as calças de ganga na perfeição.
Ia na rua e ninguém olhava para os meus pés, ao contrário do que eu pensava que ia acontecer.
No trabalho, uma empresa de moda, ninguém comentou.
Estava passado no teste.
E ao final do dia elas estavam de facto menos brancas e mais sujas.
No dia seguinte tive de as usar outra vez.
Foi quase preciso uma petição do outro calçado do armário para que as parasse de usar.
Estou apaixonado pelas minhas sapatilhas brancas sujas.
São confortáveis.
Mas na verdade, acho que é porque me sinto como um membro de um gang americano que sabe cantar hip-hop quando as calço.