O Homem Que Murmura Sozinho - 2
“Sorry, what time is it?”, pergunto receoso.
Ele pára, estático, a olhar para mim.
Segundos depois olha para o relógio e atira: “A quarter to six.”
“Thanks”, respondo eu.
Sinto agora que já fui mais longe do que alguma vez iria.
Se bem que perguntar as horas não é o mesmo que perguntar o que ele murmura.
Mas já entrei na zona de desconforto.
Há umas semanas atrás o professor de guionismo disse que deveríamos fazer isso mais vezes.
Sair da zona de conforto e fazer coisas que em circunstâncias normais não faríamos.
Diz ele que isso nos ajuda a criar melhores personagens.
Talvez.
Mas reconheço que não é fácil, apesar de estar a viver numa cidade onde ninguém me conhece e onde posso fazer isso sem consequências de maior.
Há umas semanas atrás parei a olhar fixamente para umas miúdas que estavam a gozar quase toda a gente no metro.
Obviamente que ao fazer isso tornei-me no centro das atenções delas.
E passei a ser eu o alvo do seu gozo.
No momento em que elas se viraram para mim senti que já não havia forma de voltar atrás e só poderia levar as minhas acções em diante.
Como elas já tinham gozado quase toda a gente na carruagem, fazendo referências à roupa ou ao estilo dos cabelos, resolvi usar isso em meu favor.
Toda a gente já estava a ficar farta delas.
E quando comecei a fazer-lhe caretas, toda a gente se riu.
Fazendo com que fossem elas a sentirem-se envergonhadas.
Nessa altura elas teriam duas possibilidades: sair na estação seguinte para acabar com o momento desconfortável, ou aumentar ainda mais a animosidade para comigo e tentarem fazer-me parar.
Infelizmente optaram pela segunda.
Começaram a usar calão inglês.
Parte dele não percebi.
Voltava a estar em inferioridade.
Reparando que chegaríamos à paragem onde teria de sair, usei isso em meu favor.
Levantei-me bruscamente, levando-as a encostarem-se para trás no banco com medo que lhes fosse fazer alguma coisa.
Parei quieto sem dizer nada, o que ainda aumentou mais o suspense.
Por essa altura tinha toda a carruagem a olhar para mim e a tentar adivinhar o que iria eu fazer a seguir.
Quando o metro parou disse, em português:
“Xau meninas feias”.
E saí.
Elas ficaram sem reacção.
A olhar para mim, acho.
Porque nem para trás olhei.
Acho que ganhei o combate.
Mas a minha maior vitória foi ter conseguido sair dessa tal zona de conforto.
No início é difícil, mas reconheço que depois se torna engraçado.
O mais provável é que nunca mais volte a ver aquelas miúdas.
E foi a pensar nisso que levei a “brincadeira” até ao fim.
O homem que murmura foi-se embora.
E como já passa das seis, acho que vou fazer o mesmo
O café fecha às seis e meia.
Quase sem que me apercebesse escrevi cinco páginas de texto.
Nada mau, para uma tarde de domingo chuvoso.